04 maio 2015

O Interrogatório Interior


Por favor, sente-se. Fique à vontade. Quer uma água, um café, um refrigerante?  Um bourbon duplo com soda?

- Não, eu... Cara, onde eu estou? Quem é você?

Eu faço as perguntas, se você não se importar. Quem eu sou e onde estamos não é relevante. Não estamos aqui para falar de mim, mas de você. Estamos aqui para nos conhecer um pouco melhor. Quer dizer, pra eu conhecê-lo um pouco melhor. Muito melhor. Na verdade estamos aqui para conhecê-lo a fundo.

- Eu estou sendo acusado de alguma coisa?

Está? Não sei, você me diz. Você já cometeu algum crime? Algo que tenha se arrependido?

- Eu quero um advogado.

Sem advogados. Sem intermediários. Somos apenas eu e você aqui, e é assim que vai ser. Vou te fazer uma série de perguntas e você vai respondê-las com toda a sinceridade. Como se sua vida dependesse disso. Porque ela depende, pode acreditar.

- O que você quer saber?

Quero saber tudo. Cada detalhe sórdido, cada trauma, mesmo que pareça irrelevante. Cada mania, cada trejeito, cada história que você testemunhou ou vivenciou.

- E por que eu faria isso?

Porque você não tem escolha. Porque você ainda não existe. Só existirá depois que responder às minhas perguntas. Até lá você será apenas um esboço, um conceito abstrato. Serão suas respostas que irão justificar sua existência, e irão determinar como será sua vida a partir de então. Desse modo, sugiro que você sente, relaxe e me conte tudo o que eu quero saber, tudo o que eu preciso saber. Caso contrário você retornará ao limbo amorfo da não-existência. Ou pior.

- E se eu me recusar?

Você não pode. Você não quer recusar. Estou lhe dando a oportunidade de se tornar algo. A alternativa é óbvia. Eu poderia te hipnotizar, injetar um pouco de soro da verdade, lançar um feitiço, te enrolar no laço da Mulher Maravilha, tanto faz. O que você preferir. O que for necessário. Mas você só sai daqui depois de responder minhas perguntas. Todas elas.

- Quem é você?

Eu sou quem irá contar sua história, que irá transformá-la em realidade. Eu irei pegar tudo o que você me der e misturar, bater, moer e destrinchar até virar polpa. Eu depois irei dar um sentido à essa polpa, e, por consequência, à sua existência.

- E eu serei o herói dessa história?

Pode ser. Pode não ser. Depende. A única coisa que posso garantir é que você será o protagonista de sua própria história.

- Somos todos protagonistas de nossas próprias histórias.

Agora você está me entendendo. Podemos começar?



E é assim que deve iniciar a sabatina com todos os seus personagens principais. Um bom personagem, seja ele protagonista, antagonista ou coadjuvante, deve gerar empatia no leitor. E para que isso aconteça é preciso haver algum tipo de identificação, algo que justifique seus atos, suas decisões, sua existência. E para que isso ocorra é preciso começar a tratá-los como seres vivos. Conversar com eles. Colocar-se em seus lugares, compreendê-los da maneira mais completa possível.

A técnica do "interrogatório" é eficaz pois coloca o personagem em uma situação vulnerável, onde ele deverá se abrir ao escritor sem nenhuma ressalva. Ele deverá contar tudo, desde eventos históricos, passando por ideologias e visões do mundo, chegando até a traumas e segredos que ele nunca compartilhou com ninguém antes. Serão esses detalhes, a soma deles, que transformará seu personagem de um rabisco mal ajambrado em uma pessoa viva, com objetivos, motivações e obstáculos claros. Que o tornarão verossímil, tridimensional.
Falando em dimensões, nesse processo você deverá passar por todas elas antes de poder considerar seu personagem como criado. Como vimos nos artigo anterior, as três dimensões do bom personagem são:

  • Primeira dimensão: Como ele é visto pelos outros.
  • Segunda dimensão: Como ele se enxerga, graças à sua história de vida.
  • Terceira dimensão: Como ele realmente é, ou como ele age quando está sob pressão.

A primeira dimensão é a mais simples, mas nem por isso deve ser tratada com descaso. Há diversas técnicas para criar a aparência exterior de um personagem. Você pode escolher a que quiser, mas é importante que escolha pelo menos uma. Crie uma ficha de personagem, faça um desenho, uma escultura de argila, tanto faz. Mas faça. Descubra como seu personagem se parece e como ele se mostrará ao mundo que você irá inseri-lo. Visualize-o. Adicione manias, trejeitos, detalhes característicos.

Coloco abaixo uma boa lista para se começar. Sinta-se à vontade para incluir ou excluir o que achar relevante, mas preencha-a:

  • Dados Catalográficos:
    • Apelido (Como o personagem é chamado por outras pessoas), Nome completo, Idade, Nacionalidade/Naturalidade
  • Aparência:
    • Altura, Peso/Tipo físico, Cor da pele, Cor dos cabelos, Cor dos olhos, Tipo de vestuário
  • Características marcantes:
    • Cicatrizes, Deficiências aparentes, Tatuagens, Piercings, etc.
  • Atributos Sociais
    • Profissão, Onde estudou, Renda, Bens, Relacionamento atual, Hobbies/Interesses.

Este é um bom começo, mas ainda é pouco. Um protagonista ou um antagonista é muito mais do que isso. Se você parar aqui terá o que os críticos adoram rotular de "monodimensional", "superficial" ou simplesmente "ruim". Para evitar que isso aconteça, precisamos cobrir a segunda e a terceira dimensões. E é aí que o processo do "interrogatório" brilhará. Relembre a cena lá em cima. Imagine-se com o seu personagem em uma sala vazia. Somente você e ele. Você cheio de perguntas e ele repleto de respostas, e incapaz de mentir ou esconder qualquer coisa. É sua oportunidade de conhecê-lo a fundo, descobrir tudo a seu respeito, tudo o que ele fez ou vivenciou e que o transformou no que ele é hoje, no que ele será no princípio de sua história. Aproveite essa oportunidade. Mergulhe fundo. O mais fundo que conseguir. Não negligencie nenhum detalhe, por mais irrelevante que possa parecer. A solução para um bloqueio pode estar nesse detalhe. Você já tem um Tema, um Conceito e uma Premissa. Use isso a seu favor. Pense em seu personagem nesta história que está sendo gestada, mas permita que ele tenha uma história própria, mesmo que elas sejam interdependentes (e elas são, não se esqueça!).

Tá, e quais as perguntas eu devo fazer, você deve estar se questionando. É ótimo pensar assim. Você está indo a uma entrevista crucial com um personagem importantíssimo da história que irá escrever pelos próximos meses ou anos. Tal qual um bom jornalista, é bom ir preparado. Saber o que perguntar é essencial. Larry Brooks, em seu livro "The Three Dimensions of the Character" lista uma série de perguntas básicas que devem ser feitas sobre o personagem, que traduzo abaixo (com uma pequena adaptação para fazer sentido no contexto do interrogatório):
  • Qual é a sua história pregressa, suas experiências que programaram como você pensa, sente e age hoje em dia?
  • Qual é o seu “demônio interior”, e como isso influencia suas decisões e ações frente aos “demônios exteriores” que serão lançado a você?
  • Você tem algum ressentimento?
  • Como você se sente a respeito de si próprio(a), e qual a distância entre este sentimento e a maneira que outras pessoas pensam a seu respeito?
  • Qual é a sua visão do mundo?
  • Qual é a sua bússola moral?
  • Você é benevolente ou ganancioso(a)?
  • De que maneira você adere a gêneros ou estereótipos?
  • Se não adere a nenhum, de que maneira você se diferencia?
  • Que lições de vida você ainda não aprendeu?
  • Que lições aprendeu, mas as rejeitou ou falhou em aprender?
  • Quem são seus amigos?
  • São intelectualmente similares a você?
  • Qual é o seu QI social?
  • Você é tímido(a)? Ansioso(a)? Descontraído(a)? A Alma da Festa? Introvertido(a)?
  • Qual é o seu desejo mais secreto?
  • Qual sonho de infância nunca se realizou e por que?
  • Qual é o seu sistema de crenças ou religiosidade?
  • Qual é a pior coisa que você já fez?
  • Você tem segredos? Talvez uma vida secreta?
  • O que as pessoas mais próximas a você não sabem a seu respeito?
  • O que o(a) faz postergar uma tarefa, procrastinar?
  • Alguma pessoa ou evento já impediu seu avanço pessoal?
  • Quantas pessoas iriam a seu funeral? Por que alguém decidiria não comparecer?
  • Qual o seu aspecto mais improvável ou contraditório?
  • Quais são suas manias ou hábitos?
  • O que o(a) diferencia do resto das pessoas? Que ponto de sua história pregressa o(a) levou a isso?
  • Você tem alguma cicatriz psicológica que afeta sua vida?
  • Como você age quando está sob pressão?
Nada impede que sejam incluídas outras perguntas, para fins de maior aprofundamento, mas no mínimo essas devem ser respondidas. Escreva as respostas. Não as mantenha no campo das ideias. Faça seu personagem respondê-las. Isso, além de ajudar você a compreender seu personagem, irá auxiliá-lo a encontrar sua voz.

Muito importante: não tenha pressa. Desfrute esse momento de intimidade entre você e o seu personagem. Quanto mais tempo você investir nesse processo, melhor será para sua história. Um personagem bem construído, bem estruturado, irá impelir sua trama. Ele será a carne e os músculos de sua narrativa. E quanto mais você conhecê-lo, menor a chance de ficar bloqueado ou usar a desculpa esfarrapada de que "perdeu o controle do personagem". Isso é uma bobagem. Se você perdeu o controle é porque nunca o teve, pra início de conversa. Reverta essa situação. Você e seus personagens irão passar muito tempo juntos, então é bom que sejam íntimos. Permita-se essa intimidade.

Terminado o processo de criação de cada personagem principal (primários e secundários), é hora de sentar e colocá-los em algum lugar. E é importante que esse lugar seja sólido, resistente o suficiente para suportar eles e a sua trama. É importante que sua história tenha uma estrutura. De nada adiantará jogar personagens bem construídos em uma realidade desconjuntada, sem objetivos ou fronteiras claras. Se os personagens são a carne e os músculos, a estrutura é o esqueleto, o que sustentará sua história. E é disso o que falaremos no próximo artigo.

Até lá.


Este artigo é o quinto de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui. Continuem ligados para ler os próximos. 

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