01 abril 2015

O Discurso do Método (ou Pantsers vs. Plotters)


Visualize por um instante a figura romântica do “Escritor”. Aquela figura mítica, culta e inteligente, um tanto excêntrica, cercada de livros, papéis, anotações e copos de uísque. O cigarro pende no canto da boca enquanto o cérebro flana no meio das nuvens, desbravando a névoa do imaginário e pescando histórias no éter do inconsciente coletivo, munido apenas de sua criatividade natural, sendo carregado nos ombros de suas musas inspiradoras. O escritor de vocação, o gênio inato das palavras e sentenças, cujos dedos enfeitiçados tamborilam incansáveis o teclado de uma velha máquina de escrever, produzindo sempre obras-primas imortais. Tudo o que ele precisa é de um gole de uísque, tempo e um estoque infinito de papel.

Imaginou? Você queria ser ele, não queria? Confessa.

Bom, hora do choque de realidade:

Esse escritor não existe.
Ponto, parágrafo, outra linha e travessão.

Calma. Toma uma água. Ou um gole de uísque. Não, não tome o veneno que está em cima do piano ainda. Respira. Fica comigo. Não é porque não existe esse arquétipo do Escritor Divino que você precisa desistir da carreira. Talvez, mas não por esse motivo. Realidade é bom. Realidade põe os pés no chão e os dedos no teclado. Suas histórias precisam voar. Você não. Pega minha mão e caminha comigo um instante. Traz o uísque.

Aquele escritor não existe. Mas quais existem? Há muitas tentativas de catalogar os diferentes tipos de escritores. A mais recente os separa entre pantsers e plotters (ou planners). Uma tradução livre para estes termos seria “intuitivos” versus “planejadores”, no sentido que os primeiros simplesmente sentam e escrevem, tendo em mente apenas um fiapo de conceito e um esboço de protagonista, enquanto os outros planejam toda a história, criam toda a trama, constroem personagens, delineiam capítulos e reviravoltas antes mesmo de escrever a primeira linha. 

Vamos tirar um preconceito do caminho antes de continuarmos: É possível que um escritor “intuitivo”, que senta e escreve sem pensar a respeito, consiga produzir uma obra-prima? Claro. Perfeitamente possível. Aliás, muitos dos grandes gênios da literatura mundial podem ser considerados desta categoria. São os que mais se aproximam da descrição romântica lá do começo do texto. Mas estes são raridades. Se você é um deles, pare de ler esse texto imediatamente e vá escrever. Agora. Não olhe pra trás. Fique tranquilo, estarei na fila de seu lançamento. Mas saiba que te odeio com todas as fibras de meu ser. Dedicatória para seu grande fã, Alexandre, por favor. Morra afogado numa pilha fumegante de estrume, seu desgraçado. Obrigado.

Mas eu não sou um desses. E, muito provavelmente, você também não é. Pense um pouco em sua produção até aqui. Quantas vezes você tirou aquela história da sua cabeça, despejou-a no papel e ela se transformou em uma obra de arte logo na primeira versão?

Nenhuma, né?

Nem eu.
Calma! Fica comigo. Não tem nada de errado nisso. Todos nós começamos como escritores “intuitivos”, cujos primeiros escritos impublicáveis jazem inéditos em sua gaveta e que você não permite nem que sua mãe leia. Aqueles em que você morre de vergonha só de lembrar deles. Textos que você escreveu na empolgação, de uma sentada só, que jorraram sem controle ou plano. Eles são um passo necessário para a evolução, para o aprendizado. Deixa eles lá quietos na gaveta que é o lugar deles. Levanta a cabeça e siga em frente.

Alguns de nós sobem um degrau e começam a pensar durante a criação. A qualidade melhora um pouco, mas mesmo assim quase sempre terminam com um primeiro rascunho deplorável, que precisará de diversas revisões e reescrituras para se tornar minimamente legível, quiçá publicável. Isso quando conseguem terminá-lo. Porque, quando pensamos apenas durante a produção, corremos o risco de travar, de não saber pra onde ir em seguida. Alguns chamam isso de “bloqueio de escritor”. Outros botam a culpa em seus personagens, que subitamente “ganharam vida própria” e saíram do controle. Bobagem. Personagens não criam vida. E mesmo que criem, é você quem deu vida a eles, pode tirar quando quiser. Você é o deus de seus personagens, responsável por suas atitudes e destinos, então não se acovarde. E o tal “bloqueio” nada mais é que uma desculpa, um mito. Você se deixou levar pela maré e ela te jogou numa ilha deserta, sem chance de resgate, onde sua história definhará até morrer de inanição. Acontece. É um risco quando se é um escritor intuitivo.

E existem os planejadores. Os que pensam antes de escrever. Que delineiam toda a história antes de contá-la. Que sabem onde ela vai terminar antes mesmo de darem o primeiro passo. Que perdem dias, meses, escrevendo panos de fundo para cada personagem, mesmo que quase nada daquilo será diretamente usado ou referenciado na história. Que sabem o que vai acontecer em cada capítulo, em cada diálogo. Que efetivamente terminam a história que começaram a escrever.
Eu consigo ouvir seu Artista Interior berrando daqui. “Esse filho da puta quer matar sua criatividade! Fuja, salve-se, proteja sua obra! Ele quer assassinar sua integridade artística!”. Acredite, eu já ouvi esses mesmos berros em minha cabeça várias vezes. E, quer saber? Eles estão errados. Há hora e lugar para tudo. Organizar sua produção não significa suprimir sua criatividade, apenas concentrá-la onde ela é útil e necessária. Lembra-se daquele ditado, que a criação é “um por cento inspiração e noventa e nove por cento transpiração”? É sobre isso que estou falando. Não supervalorize a inspiração. Quem escreve só quando está inspirado não escreve nunca. E raramente termina o que começa. Consegue escrever talvez um conto curto. Uma anedota ou um poema, quem sabe? Mas se seu objetivo é escrever uma história longa, com diversos personagens, tramas, subtramas e reviravoltas, algo que irá consumir meses ou anos de sua vida, não dá pra contar apenas com inspiração, criatividade e espontaneidade. Você vai travar. Você vai abandonar o barco. E, mesmo que consiga terminar, terá em mãos um original impublicável que necessitará de inúmeras revisões e meses de retrabalho, sem nenhuma garantia de sucesso (neste caso, ser publicado). Pode ser que você dê a sorte de conseguir, por pura sorte ou talento inato, que sua obra fique boa de primeira. Mas as chances estão contra você.

Dentre as vantagens de planejar sua obra antes de escrevê-la, posso listar:
  • Sobrepujar o medo de começar: escrever um livro é uma tarefa hercúlea, e a perspectiva opressiva do trabalho ainda abstrato na mente faz com que muitos desistam antes mesmo de começar. Planejando você reduz o monstro desconhecido a um monstro mais familiar e manejável. Não diminui o trabalho, mas tira o medo de encará-lo.
  • Aumentar a agilidade: chega de perder horas e horas olhando a página em branco, sem saber pra onde a história deve ir ou o que fazer a seguir. Um planejamento prévio te dá o caminho das pedras de sua trama. Você sabe, no momento que senta pra escrever, o que irá escrever. Isso te livra das amarras da inspiração (mas não da criatividade). Se bem feito, um livro que levaria anos para ser realizado poderá levar uma fração deste tempo.
  • Reduzir as revisões e reescrituras: quando você terminar sua história, seu primeiro rascunho não será tão ruim (em comparação com a produção intuitiva). Claro, ainda serão necessárias algumas revisões e reescrituras, mas a vantagem é que, com um planejamento, você saberá exatamente onde e o que revisar, reescrever, adicionar ou cortar.
  • Terminar sua história: chega de bloqueios inconvenientes ou personagens rebeldes. Você é o dono da história, você dita a trama. Non dvcor dvco! Finish your shit!

Não estou aqui dizendo para você chutar seu Artista Interior pra fora do escritório e virar um "Operário Padrão" literário. Se você entendeu isso, por favor volte ao início e leia tudo de novo com mais atenção. A Arte precisa estar presente, precisa guiar cada passo. Mas ela não pode ser a única responsável pela sua produção. Você sabe como são os artistas. A Arte é uma soma de Inspiração e Criatividade, mas ela também depende de Esforço e Dedicação para sair do campo das ideias e se tornar algo concreto, compartilhável e apreciável. É preciso terminar sua obra de uma vez por todas. E para que você consiga isso, um pouco de planejamento prévio não fará mal algum. Muito pelo contrário. 

Planejar não significa engessar. Você é o dono de seu trabalho. Se no meio do caminho você perceber que seu planejamento está furado ou que descobriu um caminho melhor, nada impede que você mude todo o planejamento. Há margem para a criatividade, para o improviso, para a inspiração. A diferença é que nem você nem sua obra serão reféns destes elementos. Você sabe onde quer chegar. Se o caminho escolhido não funcionou, tente outro. Mas o destino não muda.

Então, ao invés de ficar aí resmungando sobre uma pretensa integridade artística idílica e romântica, por que você não tenta? Sente-se, planeje, delineie sua história. Depois a escreva de acordo com este plano. Você vai ver como é possível aplicar uma metodologia na criação sem necessariamente retirar o prazer da sua realização, nem a criatividade e a originalidade do produto final. Dê uma chance. Você não vai se arrepender.


Este artigo é o primeiro de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. Acompanhem o blog para ler os próximos.

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